quarta-feira, 23 de março de 2016

De mulher pra mulher.

Mãe, desde que me entendo por gente, te admiro e encho o peito para dizer que vi você trabalhando, fazendo curso técnico e ainda educando seus dois filhos. Você pra mim é um exemplo de mulher, e eu tenho orgulho de ser ao menos 1% do que você é.
Sabe, eu ainda não sou mãe, mas imagino que quando temos um filho, queremos passar o melhor de nós a eles, nossos valores, nossas idéias, nossas opiniões. Mas infelizmente, não podemos fazer com que alguém seja como nós somos, só podemos transmitir o que somos e esperar que nossos filhos aprendam e façam as melhores escolhas de acordo com o ambiente e o momento em que eles vivem.

Mãe, eu imagino que não deva ser fácil criar uma menina, nós somos julgadas pela nossas atitudes, pelo jeito que nos sentamos, pelo jeito que falamos, pela opinião que temos... aliás, parece que em certas horas querem mesmo é que não tenhamos opinião nenhuma, não é?
Mais difícil que criar uma menina, eu imagino que seja difícil criar um casal... digo isso pois em certos momentos foi difícil ser a irmã mais nova de um rapaz, e eu te admiro por ter sido capaz de fazer isso (ao mesmo tempo em que trabalhava e estudava).

Não deve ser simples ver sua menininha tornando-se uma mulher, no mundo em que vivemos. Mas as coisas mudaram muito com o passar dos anos, e neste momento, eu preciso ter voz...

Mãe, calar-se em casa nunca deu nada a ninguém, abaixar a cabeça, menos ainda. Mulheres morreram queimadas para tentar diminuir a jornada de trabalho de 14 para 10 horas diárias, para garantir o direito à licença-maternidade que você teve quando eu nasci. Não podemos retroceder.
Se hoje vivemos momentos de manifestações pelo Brasil, sua avó provavelmente não teve direito a voz no tempo dela, já que as mulheres sequer tinham direito a votar.

Mãe, falando de uma realidade não tão distante, quando meu pai nasceu, mulheres não podiam ter um salário igual ao de um homem para exercer a mesma função, e ainda hoje, sabemos que mesmo após termos igualdade de remuneração aprovada, isso não acontece tão afinco na prática...

Quando meu irmão mais velho nasceu, a mulher pode conquistar seu direito de ir à Lua, mãe... a mulher pode ir à Lua, por que eu não posso ir à rua?
Mãe, eu sempre te admirei por trabalhar, estudar e cuidar dos filhos, só que até 1962, mulheres casadas só podiam trabalhar fora com autorização do marido. Imagina, mãe, você ter que pedir autorização para o meu pai para fazer qualquer coisa? Mulheres foram à luta, e depois de anos conseguiram mudar o Código Civil para ampliar os direitos das mulheres casadas.

Ao passar dos anos, mulheres se tornaram presidentes, atravessaram o deserto, subiram picos, tornaram-se pilotos (melhores que alguns homens) conquistaram o direito de ingressar em cursos de medicina, quantas mulheres você não teve o prazer de conhecer no seu ambiente de trabalho? Conquistamos o aumento da licença paternidade, recentemente. "Conquistamos" sim! Por que um filho é dos dois, e não é uma responsabilidade só nossa. Não é incrível?

Mãe, hoje eu cresci e me tornei uma mulher assim como você, não com todas as suas qualidades, mas com meus próprios gostos, opiniões e valores.
Eu gosto de sair para um barzinho, eu gosto de tomar cerveja com meus amigos, aliás, uma das maiores paixões que eu tenho é provar diferentes cervejas, sabia? De diferentes tipos, de diferentes marcas, de várias partes do mundo. É como fazem com os vinhos, só que é com cerveja.
Mãe, quando eu saio à noite, eu não saio para “caçar”, geralmente vou ao bar de acordo com a atração musical, até porque, mãe, eu não tenho o menor sex appeal quando estou ouvindo uma música que gosto muito, e também não bebo para ficar embriagada, aliás, um dos maiores receios que eu tenho é de chegar alterada em casa, porque te respeito e não quero te ver decepcionada comigo, então eu controlo o meu limite, intercalo com água, me alimento bem... 

Mãe, eu tenho amigos homens, muitos até, e quando eu saio com eles, não quer dizer que vá rolar alguma coisa. Pode ser que aconteça...  mas é na minoria das vezes, e quando acontece, é porque eu quero.

Quando eu estiver namorando, mãe... pode ser que eu queira ir passar um fim de semana na praia, como meu irmão faz, e é simplesmente porque eu quero ir à praia com uma boa companhia, você pode imaginar que estejamos fazendo o kama sutra, quando na verdade poderemos estar jogando um jogo de tabuleiro antes de dormir, ou assistindo TV, ou fazendo qualquer coisa normal que fazemos com alguém que gostamos. Aprendi com meu primeiro namoro, que um namorado deve ser, antes de tudo, um amigo, alguém com quem eu possa conversar sobre as coisas e me divertir, sem precisar estar "namorando" de fato todo o tempo em que estivermos juntos. Mãe, nada aconteceria sem a minha permissão, e se ele tentasse algo mesmo sem a minha vontade, a gente poderia denunciá-lo, porque trataria-se de um estupro, claro que eu não quero um homem que não me respeite ao meu lado, pois você me ensinou isso.

Muitas vezes, quando eu saio com amigos, se chego em casa mais tarde do trabalho, você me recebe com uma cara fechada, como se eu estivesse errada por me divertir. Lembro das vezes que você não me deixava dormir durante o dia quando eu chegava de manhã, por que essa punição? O que foi que eu fiz de errado?
Mãe, se meu irmão trabalha, eu também trabalho e compro minhas coisas com meu dinheiro, você sabe o quanto eu sempre trabalhei e continuo, porque então não poderia me divertir? Eu me estresso igualmente e também preciso extravasar... 

Se meu irmão tem “necessidades”, eu também tenho! Tenho hormônios e, como você sabe muito bem, eles dançam pelo corpo e nos fazem atingir uns picos súbitos e insaciáveis. Somos anatomicamente diferentes, mas somos feitos da mesma matéria. Mas eu me controlo, porque como eu disse, não quero qualquer homem ao meu lado. 

Mãe, não pense que eu sou uma rebelde. Se eu me depilo de determinada forma, isso não influencia os meus valores, é simplesmente porque eu me sinto melhor assim. Se eu compro determinado tipo de calcinha, não quer dizer que eu seja indecente, pode ser porque o preço se encaixava no meu bolso, porque quis comprar um sutiã e obrigatoriamente tive que comprar o conjunto, porque simplesmente achei bonita, ou seja lá qual for o motivo, mas você não pode me julgar por isso, ninguém pode. Assim como a roupa que eu visto nada quer dizer sobre o meu caráter, visto simplesmente porque me senti bem nela. Para ser sincera, mãe... me visto mais para ter a sua aprovação enquanto passo pela sala, do que para me sentir bem de verdade quando saio de casa... 

Eu te amo e te respeito, você me ensinou todos os seus valores e o que aprendeu com a vida, eu quero continuar aprendendo com você, mas também quero te mostrar como o mundo funciona agora, que nós mulheres podemos ser muito mais livres, que temos cada vez mais poder para bater de frente com qualquer pessoa que queira nos julgar por nossos atos, jeitos, gostos, opiniões, etc, podemos ser o que quisermos hoje, astronautas, motoristas de caminhão, policiais, lutadoras de boxe... o céu é o limite! Até a Barbie tem mudado e mostrado que as mulheres podem ser como elas quiserem, que não precisamos seguir padrão nenhum. Eu fico triste por não ser exatamente a mesma coisa como foi nos seus vinte e cinco anos, mas gostaria que você ficasse feliz por as coisas estarem mudando e evoluindo, e você ainda pode provar dos benefícios dessa mudança! Mãe, não estou dizendo que o seu tempo era outro, mas que as mudanças tem acontecido cada vez mais rápido, o mundo muda a todo instante. 



Eu sei, mãe, que o mundo não é um lugar seguro, que não podemos confiar em qualquer um, você me ensinou tudo isso e sempre buscou trazer os exemplos que você via por aí. Só que nós mulheres nascemos com um sexto sentido incrível a ponto de sentir os caminhos ou as companhias que devemos evitar, isso é natural nosso e é nosso maior escudo.

Mãe, pode ser que um dia eu seja uma mãe, e o mundo da minha filha será diferente do meu. O mundo da minha prima mais nova já é diferente do meu, e às vezes eu entro em choque com o universo dela, mas sei que ela está se tornando uma mulher tão incrível (o que não pode ser diferente, vindo de uma família como a nossa), que eu sinto que ela certamente sabe o que está fazendo.  

Eu espero que minha filha possa aprender com os meus valores e absorver o melhor deles, espero também que ela possa formar o caráter dela aprendendo com o erro dos outros e com as coisas que ela irá observar na rua, como eu venho fazendo; espero que ela possa viver da melhor forma possível, sendo a mulher que ela vir a se tornar, e que eu possa dar asas a ela, quando chegar a hora.


Mãe, eu não quero te atacar com esse texto, eu quero te agradecer por ter feito eu me tornar a mulher que eu sou, minha determinação, minha independência, meu jeito de bater o pé enquanto eu não conseguir as coisas do jeito que quero, vem de você, minha generosidade e meu amor ao próximo, vem de você. Hoje eu criei o meu caráter, a minha personalidade, os meus valores, a minha própria opinião, graças à educação e o exemplo que você me deu, e isso jamais mudará, independente do que eu faço no meu cabelo, da hora em que eu volto para casa, do que eu bebo na rua ou do que eu visto. Eu não quero ser igual ao meu irmão, eu só quero poder ter o direito de ser eu mesma, e não ser reprimida. Já passei por alguns apuros, mas eu soube passar por cima, pois eu tive consciência do que estava fazendo, e eu aprendi com todos eles, eu gostaria de dividí-los com você, mas quero que você possa me ouvir sem me julgar. Eu só quero que você confie em mim, que se preocupe mais com as coisas que te fazem bem, e entenda que eu jamais faria algo para desapontar você, ou algo que fosse contra os meus princípios, pois tudo o que eu quero é te ver feliz, como todas nós devemos ser. Eu mereço e você também!


quinta-feira, 17 de março de 2016

Florença

Resolvi ir à Florença porque aprendi no meu antigo emprego que ir à Itália e não fazer o trio Roma-Florença-Veneza, era pecado. Nem sabia ao certo o que existia lá para ver, provavelmente este era um daqueles destinos em que eu usava o discurso pronto “Caminhe por suas belas ruas e visite um ou dois museus”.

Florença foi um perrengue mesmo antes de eu chegar e continuou sendo até eu ir embora. Mas talvez tivesse sido um perrengue necessário.
Já começamos no trem partindo de Roma, dividi uma cabine-leito com 3 italianos, me esforçando para entender o que eles conversavam. E era a única forma de distração, já que foi o meu primeiro trecho sem wifi, sem uma tomada e com um livro que eu simplesmente não conseguia ler de forma alguma.
Não passei por nenhum “pânico por ser uma mulher e viajar sozinha” até tomar o trem Roma-Florença quando, na hora de dormir, um dos italianos que estava na minha diagonal ficava fazendo uns movimentos estranhos, enquanto deitado de bruços. A princípio, na minha inocência, imaginei que ele estivesse se ajeitando para dormir, até que realizei que ninguém se ajeita por mais de 10 minutos...

Florença, com seu ar medieval, não foi abençoada pela tecnologia do metrô ou do tram... mas tem ruas lindíssimas onde os carros pouco se atrevem a passar e as pessoas caminham admirando as casinhas que parecem terem saído de filmes. E foram por estas ruas que nós andamos... por 3 kilômetros e meio para chegar ao Hostel. Andamos.... eu, minha mochila nas costas, minha bolsa a tira colo, minha mala de mão pendurada no braço, minha mala vermelha de 23kg e mais outra bolsa apoiada na mala. Andamos até que a uns 200 metros do hostel, ao atravessar a rua, minha mala de 23kg resolveu ficar no chão enquanto a alça ficou na minha mão...
Florença me reservou o pior hostel de toda a trip, onde eu sequer pude levar minhas malas ao quarto pelos seus 3 lances de escadas estreitas (A tecnologia do elevador também parece não ter chego por lá). Florença me reservou o dia mais gelado até então, gelado demais para que a bateria do meu telefone aguentasse por mais de duas horas. Florença me reservou as entradas mais caras (as quais eu preferi não pagar).


Florença foi linda, desde o carrossel que me recebeu no meio da cidade medieval, até ao seu ar de cidadezinha do interior de Minas (mesmo sem eu nunca ter ido ao interior de Minas), passando pelo prazer do sabor dos gelattos (poderia viver disso), pela loucura do Mercado Central e a beleza fora do comum da Santa Maria del Fiore (entre os lugares mais bonitos que eu vi em toda a minha aventura).  Florença me deu um enorme poder de liberdade em poder substituir a Galleria Dell’Accademia e a Galleria degli Uffizi por alguns itens de maquiagem da Kiko, afinal de contas, a viagem é toda minha e eu posso fazê-la como desejar; depois de passar uma tarde inteira no Louvre e mais outra no Museu do Vaticano, eu já estava bem satisfeita de obras de arte. Florença foi tão linda, que eu nem me importava mais com os perrengues até então.



Mas Florença me tocou mesmo de outra forma, me fez ter consciência de uma parte de mim que eu não valorizava como deveria.

Meu trem para Veneza sairia à 01h30 da manhã, e assim como eu e as amadas malas andamos mais de 3km para chegar ao hostel, precisamos fazer o mesmo caminho de volta, dessa vez com uma mala quebrada. A manta que eu usava para amarrar as alças da minha mochila no meu corpo, tive que usar para tentar uma gambiarra na minha mala.

Eu e as amadas malas saímos do hostel pouco antes da meia noite, e entre as pessoas que iam ou voltavam dos bares estava eu, andando a 1km por hora, quase carregando a mala de 23kg na mão para que a alça não escapasse novamente, e agora com o incômodo da minha mochila escorregando dos meus ombros a todo instante já que eu não tinha mais com o que amarrá-la em mim. Você pode me perguntar o porque eu não comprei outra mala, pois eu te digo que o valor de uma mala nova era o valor que eu tinha para gastar por dia durante todo o resto da trip.
Andava por 2 minutos, parava, respirava, tentava de novo, quando a alça da minha mala ameaçava escapar, parava novamente, respirava, tentava de novo. Cogitei desrespeitar as leis do mochileiro e pegar um taxi, mas na parte medieval de Florença, logicamente não passava nenhum. E foi a primeira vez durante toda a trip que eu chorei de nervoso/raiva/desespero.

Mas sabe...?

Não durou tanto.

Quando olhei o relógio e o mapa, vi que faltava apenas 1 dos 3km do percurso, e que não tinha andado tão devagar assim, apesar das inúmeras paradas, então engoli o choro e continuei.

Durante aquele km restante, o pensamento foi de que aquela situação não era para qualquer pessoa. Não era para qualquer mulher carregar tanto peso, sozinha por uma madrugada de 3 graus. E por um momento eu lembrei de diversas vezes em que eu me rebaixei a situações que eu não merecia passar, que eu aceitei menos que eu valia, que eu me impus menos que eu podia. E concluí que eu não merecia nada daquilo.


Realizei então de que realmente aquela situação não era para qualquer pessoa, porque de fato eu não sou uma pessoa qualquer, e que se alguém quisesse andar comigo, teria que ser muito mais que qualquer pessoa.